SALVADOR DE BOTECOS

É quase um troféu. Bem no alto de uma prateleira do point mais badalado atualmente na orla de Ipanema, uma mala de couro velha e desgastada passa desapercebida pelos clientes entre garrafas de gin e vodcas importadas.  Tal posição de destaque não é por acaso. Foi com ela e uma modesta muda de roupas que em maio de 1984, com apenas 16 anos de idade, Antônio Rodrigues deixou a pequena Hidrolândia, no noroeste cearense, rumo ao Rio de Janeiro com o sonho de conquistar a cidade grande. “Vendi uma ovelha que ganhei de um tio para comprar a passagem. Meu pai precisou ir à delegacia para autorizar a viagem. Na primeira parada da estrada, morrendo de calor, desci do ônibus para tomar banho e fiquei morrendo de vergonha. Não sabia abrir o chuveiro! Nunca tinha visto um daqueles na vida”, lembra. Trinta e sete anos passados, Antônio pode se considerar um vencedor. O dono da rede Belmonte, que comanda mais de 200 funcionários em 19 diferentes casas (sendo duas em São Paulo e três em Portugal), comemora o sucesso de sua filial inaugurada há pouco na Vieira Souto, o metro quadrado mais caro da cidade, e ainda promoveu a ressurreição de um mito da boemia carioca: o Amarelinho da Cinelândia, que fechou durante a pandemia. “Vou juntar toda a esquerda na festa de reinauguração”, prometeu. E fez.

Mente quem diz que a carreira de Antônio foi uma estrada de tijolos dourados. Quando chegou do Ceará, passou uma semana morando em um barraco na comunidade de Vital Brazil, em Niterói, até que um conhecido lhe arrumou um emprego de faxineiro na então Churrascaria Copacabana.  Assim, deixou a favela e mudou-se para um cortiço em Botafogo. “Eram oito pessoas em cada quarto e nem tinha um banheiro direito, tomávamos banho no balde”, lembra. Trabalhador, Antônio em pouco tempo se livrou da vassoura e foi promovido para ajudar no bar, em seguida virou cumim – aquele funcionário que limpa mesas, ajuda os garçons, mas não anota pedidos. Num almoço de domingo, deixou cair um prato e foi demitido no ato por um maitre enfezado. “Eu chorei muito, porque era uma época muito difícil de arrumar emprego. Mas um dos patrões viu tudo, me chamou e disse: vai pra casa e vem aqui amanhã que vamos dar um jeito”, conta. No dia seguinte já estava empregado como garçom do Mab’s, conhecido bar na esquina da Prado Júnior com Avenida Atlântica, em Copacabana.

Ralou 10 anos por lá guardando cada centavo que podia para realizar o sonho de ter seu próprio botequim. Quando juntou dinheiro suficiente, comprou o Carlitos, um barzinho na esquina da Álvaro Alvim com Francisco Serrador, perto da Câmara Municipal, do Teatro Rival, e do (agora todo seu) clássico Amarelinho. E ali começou suas primeiras experiências na direção da criação de um novo conceito de boteco “pé-limpo”. “No começo era só um pessoal do PT que batia ponto lá. Depois começaram a aparecer uma turma do BNDES e, em seguida, umas mulheres mais chiques, que não tinham a menor pinta de frequentar botequim, mas começaram a ir ao Carlitos porque era um lugar descontraído, com mesinhas na rua e em frente ao Teatro Rival”, diz.

Com o aumento da freguesia, Antônio não se acomodou. Disposto a aumentar o faturamento, acabou criando o que mais tarde seria uma das marcas do Belmonte. “Lá no Carlitos não tinha nem cozinha. Então eu comecei a fazer pastéis de dia, improvisando a fritadeira em cima de um freezer e, de noite, os garçons começaram a circular pelas mesas oferecendo aos clientes. Foi um sucesso danado”, lembra sorrindo. A ideia deu certo. Sete anos depois ele já estava prestes a realizar o sonho da casa própria. Mas enquanto sua mulher, Silvana, namorava um apartamento em Laranjeiras, ficou sabendo que o dono de um certo botequim decadente chamado Belmonte, fundado em 1959 na Praia do Flamengo, queria passar o ponto. Em vez do apê, investiu toda a grana no bar. “Paguei mais ou menos 250 mil em dinheiro de hoje. Minha mulher ficou uma fera quando soube”, diz.

“O carioca, naquela época, tinha perdido o hábito de beber em pé. O que que eu fiz? Um banheiro ajeitadinho pras mulheres poderem frequentar, e passei a servir chope em pé”, conta Antônio. Logo a calçada em frente ao bar passou a ficar lotada de gente. A consagração não demorou a tardar e meses depois, em uma reportagem do jornal O Globo sobre novos hábitos cariocas, o economista e ex-reitor da UFRJ Carlos Lessa declarou que o comportamento mais interessante que ele estava reparando na cidade era quando passava em frente ao Belmonte e via uma multidão bebendo em pé.

“Aí todo mundo engajou. Os outros bares voltaram a colocar barris na rua pro pessoal beber em volta, uma coisa muito carioca que estava se perdendo e foi retomada”, relembra. Mas nem só de cevada vive a boemia. E o patrão decidiu apostar alto na qualidade, ganhando fama na praça por oferecer também comida farta, saborosa e com preços para todos os bolsos. “Você pode chegar no Belmonte e tomar um chope geladíssimo com um pastel de carne por 15 reais ou comer um baita bacalhau com um vinho de 600 pratas”, diz: “além de contar com um garçom bem-vestido, que te atende sem que você tenha que pedir pelo amor de deus e, principalmente, um banheiro sempre limpo e arrumado”.

As famosas empadas surgiram num raro dia de descanso (Antônio trabalha em média 16 horas por dia, faça chuva ou faça sol). “Eu estava em casa assistindo TV quando vi um espanhol fazendo não uma empada, mas um doce que tinha essa cobertura assim bem vistosa. Pensei na hora: vou fazer empadas abertas e parecidas. Foi outro sucesso”, recorda-se. Antônio não parou e começou a comprar outros bares, espalhando o padrão Belmonte pelos bairros da cidade, até abrir em agosto deste ano seu mais novo “pé limpo” na emblemática esquina com a praia de Ipanema que já abrigou diferentes negócios, como pizzarias, o Espaço Lundgren (uma espécie de versão carioca da ultrachique e paulistana loja Daslu) e o restaurante Alberico’s, do empresário italiano Alberico Campana, nome que foi de especial relevância na noite carioca.

“Eu te confesso que não esperava o tamanho do sucesso do Belmonte da Vieira Souto”, disfarça. Antônio tirou o escorpião do bolso e investiu três milhões de reais na reforma do imóvel de 600 metros quadrados, que ganhou uma arquitetura arrojada, com muito vidro, ferro e paredes de tijolos aparentes cheias de estantes com os mais diferentes rótulos de bebidas. “Mas eu sabia que ia dar certo pela estrutura que montamos, a característica, esse pé-direito alto que faz com que você não se sinta achatado. Daqui você vê o mar e do rooftop enxerga mais mar ainda. Eu integrei a parte interna com a rua, e à tarde, com o sol se pondo, é uma delícia”, orgulha-se.

Como na vida, dizem, tudo se copia, logo a concorrência estava seguindo seus passos. Antônio recorda certa vez quando reparou que, durante uns seis meses, um certo cliente aparecia sempre de 15 em 15 dias e passava horas no Belmonte de Copacabana, bebendo pouco e fazendo anotações. “Descobri depois que era um sujeito do Recife, dono de um bar chamado Boteco. Hoje ele já está em Fortaleza, Recife e Salvador. Depois veio Conversa Fiada, veio Espelunca, veio Informal. Acho que a Brahma deveria me pagar royalties”, ironiza: “até em São Paulo as pessoas começaram a tomar chope em pé. Antigamente paulista não ia de camiseta e sandália para o bar, era todo mundo meio chiquinho”.

Nem tudo, porém, são flores. “Carioca parece que gosta de reclamar. Tem lugares em Paris que você anda se desviando das mesas. Em todo o lugar do mundo tem mesas na rua. O único lugar em que as pessoas não querem mesa na rua é no Brasil. Acho incrível isso”, reclama. Outro problema é que os Belmontes atraem tanta gente que não são poucas as reclamações de vizinhos incomodados com a barulheira gerada pela animação da clientela. Antônio tratou de resolver o imbróglio de maneira rápida e objetiva. Dispôs-se a instalar janelas acústicas nas casas dos reclamões. Segundo ele, só no entorno da filial do Leblon já gastou mais de um milhão e meio de reais em proteções sonoras. “Teve um sujeito certa vez que ficou bravo. Disse que eu estava tentando comprá-lo”, conta: “mas eu preciso trabalhar, estou dentro da legislação, entendo também que posso incomodar alguns, então procuro sempre uma solução razoável para todos”.

E vem mais coisa boa aí. Para alegria dos boêmios, Antônio promete, além do novo Amarelinho, com o padrão Belmonte de qualidade, fazer do local um ponto de encontro do samba carioca, que já começou na inauguração, com Moacyr Luz e o Samba do Trabalhador. E a festa de inauguração foi um sucesso etílico e musical”. “Eu gosto do que faço e faço o que gosto. Eu não estou no ramo, eu sou do ramo. Surgiu um monte de bar achando que ia acabar com o Belmonte, mas aqui eu digo o seguinte: quem não vem passa a vir; quem já veio, volta e quem odeia vai gostar”. Saúde!