Ele faz bonito tanto no pé sujo quanto no restaurante mais sofisticado. “O picadinho revelou-se ideal para salvar vidar em horas mortas e recuperar disposições abaladas por uísques além da conta”, definiu o escritor Ruy Castro no livro “A noite do meu bem”. Ele se referia à famosa receita elaborada com carne picada na ponta da faca e ensopada, que é considerada um dos grandes pontos fora da curva do receituário nacional. “Rico brasileiro tem nariz empinado, não reconhece a importância e o valor de um bom picadinho”, provoca o pesquisador da MPB Ricardo Cravo Albin, que costuma sempre oferecer o prato aos convivas que tem a oportunidade de conhecer sua cobertura na Urca, onde fica guardado um acervo de especial relevância sobre a música brasileira. Afinal, diferentemente de outras tantas receitas nacionais sem origem definida, o picadinho tem certidão de nascimento: ele nasceu em plena Guanabara, no Rio de Janeiro glorioso dos anos 1950.
Foi o barão austríaco Max Von Stuckart, importado pela família Guinle para modernizar as atrações do Copacabana Palace, quem introduziu o prato no cardápio da boate Meia-Noite _ que só abria neste horário, com música romântica variada, incluindo boleros e sambas-canção, fechando ao raiar do dia, daí o nome. O point atraía a fina flor da política e economia da capital federal depois dos shows na Cinelândia e da jogatina nos cassinos. Stuckart, um tipo folclórico, provavelmente conheceu o prato na Lapa, onde era servido como uma espécie de “levanta defunto” nos bares populares da famosa região boêmia do Centro.
Afinal, cozinhar carne em pequenos cubos é uma instituição universal. Na Idade Média europeia, enquanto a nobreza se regozijava traçando bois assados inteiros, além de outros animais de criação ou caça, os servos ficavam com as sobras. Geralmente carnes mais duras, que eram “amaciadas” em ensopados. Picando-as, faziam render para o maior número de pessoas. Até o século XVI, tanto senhores quanto plebeus comiam com as mãos, quando a introdução do garfo alterou o modo de comer. Segundo o historiador da gastronomia Ricardo Maranhão, nesse momento começou a despontar uma nova cozinha, mais sofisticada, e pratos picados viraram sinônimo de requinte entre os mais ricos, pioneiros no uso do talher.
Mas o picadinho como conhecemos hoje no Brasil alcançou a glória na cozinha do Copacabana Palace, onde foi reinterpretado pelo glamoroso chef executivo francês Paul Ruffin. No livro “Memórias de um Maître Hotel”, o tcheco Fery Wünsch, que veio para o Brasil em 1930 e virou diretor dos restaurantes do Copacabana Palace, onde permaneceu por quarenta anos, ensina a receita original do picadinho. Levava pontas de filé mignon refogadas na manteiga e temperadas com sálvia, manjericão, segurelha, alecrim, sal e pimenta, além de tomate e um pouco de farinha de trigo para ligar a carne, que cozinhava por dez a vinte minutos. Era servido úmido em uma panelinha ou travessa de barro, com arroz, agrião picado, pimenta-malagueta, farinha de mesa e ovo poché por cima.
Em seu livro, Fery Wünsch contou que logo virou chique saborear o picadinho. Inúmeros clientes o solicitavam. Eram milionários e personalidades cariocas, políticos, diplomatas, intelectuais, estrelas e astros de Hollywood em visita à cidade. Apreciaram o picadinho, entre outros, a princesa italiana Ira de Furstenberg, que causou alvoroço ao trocar o marido europeu pelo industrial brasileiro Baby Pignatari; a atriz e modelo Ilka Soares; o embaixador Hugo Gouthier (com pedacinhos de azeitona); o poeta Augusto Frederico Schmidt; o cronista Rubem Braga; o poeta e compositor Vinícius de Moraes (com farofa de banana), o ex-presidente da FIFA, João Havelange, o cantor Mário Reis o filólogo e dicionarista Antônio Houaiss, o ministro Oswaldo Aranha, o presidente Getúlio Vargas e Nelson Rockfeller, governador de Nova York, milionário, filantropo e empresário norte-americano.
Stuckart, o pai da ideia de incorporar o prato do povão ao cardápio da elite carioca, foi um personagem icônico do Rio de Janeiro. “Dependendo de com quem falasse, seu pai tinha sido chefe de polícia em Viena, comandante da Guarda Imperial, ou conselheiro do imperador Francisco José. As últimas hipóteses teriam feito de Stuckart pai um nobre, com o que o filho acrescentar um Von ao nome – Von Stuckart – e passara a dizer-se barão. Era homossexual, mas só os mais atilados percebiam”, descreve Ruy Castro em “A noite do meu bem”. Sofisticação era com ele. Vestia-se com bom gosto, usava ternos ingleses, gravata borboleta e óculos tartaruga. Stuckart assegurava ter servido como tenente da aviação austríaca na Primeira Guerra Mundial. Após o Fokker vermelho que pilotava ser abatido em combate sobre um trigal na Sérvia, do qual se salvou por milagre, mudou para o ramo da hotelaria. Irresistível.
Após deixar o Copa, o barão se transferiu para outro marco da história da noite do Rio: a boate Vogue, na Avenida Princesa Isabel, reduto mágico do society carioca, onde o picadinho logo caiu nas graças dos mais afamados playboys, começando por Jorginho Guinle e seus amigos inseparáveis: Baby Pignatari, Carlos Niemeyer, Mariozinho de Oliveira e Sérgio Peterzone. De acordo com o jornalista Henrique Veltman, ex-chefe de redação dos jornais “Última Hora” e “O Globo”, Stuckart oferecia ainda o prato de graça aos repórteres encarregados de cobrir a efervescência do seu estabelecimento. Dizem as lendas que um dia (ou talvez mais certamente uma noite), o colunista social Ibrahim Sued, em nome dos colegas, reclamou que embora fosse uma delícia, o cardápio oferecido aos jornalistas nunca variava. O dono da casa acolheu a reclamação e mandou colocar no picadinho creme de leite e champignons. Teria nascido assim outra receita que faria imenso sucesso no Brasil: o estrogonofe. Mas essa já é uma outra história…